Tipo a coisa, não é a coisa

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Quando vejo uma pessoa que conheci acometida com Alzheimer, sem lembrança alguma de pessoas de sua intimidade, fico tentando entender como é ser alguém sem referências. 

Nós somos o que vivemos. Nós somos nosso passado. Nós somos o que vivenciamos, experimentamos e construímos. Nós somos o que lembramos, portanto, embora também sejamos o que esquecemos. Mas não se lembrar de nada!

Existir é essa prática diária de se levantar da cama e “fazer” algo até nos deitarmos novamente. 

Não sei se fazer é o termo mais adequado, por isso ele está entre aspas indicando que fazer não significa literalmente fazer, pode ser sonhar, por exemplo. Inventar. Desejar. Se prostrar. Enfim, viver é o que preenche o nosso dia entre o momento que saímos da cama e voltamos a ela. Vida consciente. No sono, evidentemente, a vida continua, mas num outro nível, o nível do simbólico, do incontrolável, do inconsciente.

Por que falo disso tudo? Bem. Num grupo de amigos de WhatsApp alguém pediu referência sobre um colega e outro publicou uma foto exatamente como havia sido solicitado. Mas era uma foto de um grupo. Mais especificamente a foto de meninos em formação de time de futebol, com bola e numa quadra. Eu sou um desses meninos.

Me lembro que quadra é, quem são os meninos (colegas de sala de aula da faculdade), que foi uma foto feita a tarde (quando não tínhamos aula), mas não me lembro de nada. Como posso estar nesta foto? Eu já havia abandonado a prática esportiva. Eu não me entretia mais em jogos coletivos, no máximo jogava tênis ou xadrez com algum colega.

Ter Alzheimer é isso? Não se reconhecer? É muito angustiante me ver na foto e não ter um mínimo de referência sobre ela e o momento em que aquele instante foi clicado. Aliás, quem clicou? Me ver nessa foto, e não me lembrar de nada, despertou em mim uma ansiedade como nunca antes havia experimentado. Um medo inexplicável. Como se eu escorresse numa espécie de fluido pelas sarjetas rumo a um bueiro. Fosse um sonho, era daqueles pesadelos em que acordamos suando. Mas não é. Eu me vejo na foto, me esforço em vão por alguma lembrança. Em vão porque não me recordo de nada daquele clique. É, portanto, como se ele não tivesse existido. Mas o clique em si é a prova de que existiu. Como no Alzheimer. Acho.

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