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Eu o vejo de dentro do carro que dirijo.

Não sei bem o que fez eu notá-lo, mas sei que quando notei me dei conta que ele estava ali há muito tempo.

Passo sempre no mesmo horário na rua dele e ele não está lá apenas quando chove, o que é raro acontecer. Então ele sempre está lá.

Os braços estão cruzados sobre o peito e a perna direita sobre a esquerda como só é possível para uma pessoa muito magra. E este é o seu caso. Falta-lhe tonus. Ele está definhando. Seus cabelos brancos estão muito ralos, mas sempre penteados. Sempre de barba feita.

Seus olhos estão atentos aos carros que passam. Poucos caminham por sua rua, o que é justificável por ser uma ladeira. Quem descer terá de enfrentar, na volta, subida.

Nunca está de camiseta, mas de camisa branca. Ou será gelo? Sempre de calça, mas nunca jeans. É uma calça social cinza escuro. 

Ele mora sozinho? Não sei, pois só passo ali. Mas é uma possibilidade. A hora que o vejo é a de tomar banho de sol, pegar a vitamina D. Pode ser que sua mulher, tão velha quanto ele, esteja preparando o almoço. Pode ser que more com um dos filhos que, no momento em que eu passo, está no trabalho. Pode ser que nunca tenha casado e nem tenha tido filhos. Como só o vejo de dentro do carro que dirijo, nunca lhe abordei. Ele pode ser qualquer coisa. Qualquer coisa que eu imagino. 

Seus olhos tristes, acho, surgiram há 70 anos, quando ele tinha apenas 20 e se apavorou com o seu momento presente…

Não encontrou sossego o  velhinho sentado na cadeira com os braços e pernas atados, fechados, como se estivesse condenado a cumprir sua pena na cadeira perpétua, mistura de prisão perpétua e cadeira elétrica.

Há uma contagiante tristeza naquele velhinho e uma necessidade minha de passar na sua rua no mesmo horário para me certificar que ele está ali. Condenado a estar ali com a permissão para seu banho de sol. 

Por que quero vê-lo? 

O que vejo em mim quando olho para ele é o que escondo de mim, deixando-me cego e surdo para a verdade latente, escondida atrás do muro imaginário que construí para sobreviver.

São momentos de desumanização que me  definham. 

Então mergulho na racionalização do consciente que me permite acelerar o carro que dirijo e deixo-o na cadeira perpétua, em seu banho-de-sol. E sigo à rotina.

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