Da minha mesa, com o café Cuba na xícara, coado e cítrico, via as pessoas na chamada Pista de Caminhada do parque Campolim. Um jovem casal, ainda muito amorosos um com o outro, quando colocavam seu bordier cole na traseira da sua SUV branca, cheio de carinhos com o cachorro bem tratado também pelo amor que recebia deles, foi surpreendido por uma criança, arrisco a dizer que tenha 12 ou 13 anos, com os cabelos desgrenhados, que talvez nunca tenham sido lavados com shampoo e muito menos recebidos um creme condicionador.
Da minha mesa, dezenas de metros de distância, não sei com quais palavras aquela criança abordou o casal. Muito menos ainda sei as palavras que o casal deu à criança. Tive a impressão que nenhuma. O cachorro latiu insistentemente. O casal se apressou a entrar na SUV. A menina deu uns passos para o lado. A mulher, já sentada, dentro do carro, abaixou a cabeça. O marido ligou o carro. O cachorro latia e latia e latia… O carro saiu.
A menina não se atreveu a atravessar a rua e entrar no lugar onde eu estava, aconchegante numa poltrona almofadada forrada e macia, protegido por uma escada, placas com propaganda dos cafés de diferentes partes do mundo, placas com preços, vegetação em grandes vasos. Apenas quem é da classe social daquele café de pé direito alto e parede de vidro frequenta aquele local. Não era o caso daquela pré-adolescente. Por isso, penso, ela não se atreveu a entrar. Eu assistia ela andar na calçada da Pista de Caminhada de dentro do Delta.
Eu voltei minha atenção ao livro que insisto em não acabar de ler, pois se acabar sentirei falta. É a história de Vicente que deixou para trás a Polônia, casou-se com Rosita, teve 2 filhas e um filho e ao descobrir no parco noticiário de jornais o que os nazistas faziam com os judeus mergulhou num silêncio dolorido, o seu “Gueto Interior”, que dá nome ao título do livro.
Lendo sua história, vendo aquela menina a minha frente, por trás da parede de vidro do café, me lembro da cara de tristeza da minha caçula relatando que na noite de sábado ela havia visto uma criança pedindo na rua, me lembrei do velho que vi debruçado no contêiner de lixo da rua coronel Benedito Pires quando eu atravessava a praça central. Uma cena que me chocou mais pela naturalidade com que os transeuntes conviviam com o velho do que por ele estar fuçando o lixo. Me lembrei dos meninos nos semáforos.
E me vem à cabeça a expressão Fora Bolsonaro, genocida. Genocídio é uma palavra híbrida formada pelo prefixo grego génos, que designa uma grupo de mesma origem, e pelo sufixo latino cidio, derivado do verbo caedere (cair, abater), ou seja, genocida é quem abate pessoas de uma mesma origem. Por esse viés, faz sentido chamar o presidente Bolsonaro de genocida. Ele, como presidente, foi no mínimo desleixado com o seu povo, incentivando que eles se expusessem ao vírus e retardando o quanto pôde a aquisição de vacina.
Churchil disse que os nazistas cometiam um crime sem nome quando matavam os judeus. Genocídio. Holocausto. Hecatombe. Todos esses são nomes que vieram depois do fato. O comando nazista, entre eles, chamava os crimes que cometiam de “solução final”, limpeza de uma gente do ambiente de outra.
A morte da menina que minha filha viu, do velho que eu vi, das crianças nos semáforos, da pré-adolescente que segue do outro lado da rua precisa de um nome. Um nome para esse crime que o Brasil pratica de longa data e que segue sendo praticado por este presidente antivacina que vaticinou à morte mais de 550 mil brasileiros.
O sonho de um pouco de dignidade de milhões de brasileiros não consegue nascer. Esse é o crime que precisa ser nomeado. O algoz dessa gente, o criminoso, precisa ser nomeado. Hoje sabemos apenas quem são suas vítimas. Quero ver quem são seus autores. É preciso nomear este crime para chegar a eles!