Desequilíbrio

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Um dia, não me lembro o motivo, a Maria Ângela, a filha mais velha da Dona Maria, que morava na casa da frente da minha mãe na Vila Santana, levou o irmão mais novo dela, que ainda era o João Eduardo, ele não havia virado Nicola, que é como o chamamos hoje em dia, e outras crianças da rua para algum lugar de onde voltamos de ônibus… Talvez esse tenha sido o passeio, andar de ônibus. 

Passaram um, dois, três… todos por baixo da catraca. Eu não. Eu quis exibir minha força e passei girando. Eu estava lá na frente do ônibus, sentado, e o cobrador (sim, havia um funcionário que pegava o dinheiro em espécie do passageiro e se necessário lhe dava o troco)… cobrou: Cadê o dinheiro? 

Fiquei assustado, me lembro bem, sem entender o que ele queria. Eu não sabia que se pagava para andar de ônibus e, menos ainda, sabia que ao rodar a catraca ficava registrado que eu estava ali para alguém que não estava no ônibus. Ou seja, meus amigos passaram por baixo e quem soube foi o cobrador. Ele era a maior autoridade ali e podia decidir, como decidiu, por concordar e não cobrar. Mas ao rodar a catraca, a autoridade estava longe e cobraria do cobrador por aquela passagem então ele cobrou de mim. Resumindo, a Maria Ângela pagou a minha passagem… 

Eu não contei a ninguém de casa o que aconteceu. Eu não comentei com nenhum amigo o fato e nem eles comigo. Os dias seguintes foram de acontecimentos novos. Esse episódio, no momento eu não sabia, evidentemente, marca em mim o que eu entendo ser um resumo do que é o existir. Ou seja, não existe nada em si, mas somente em representação, dentro de um sistema e mediado por individualidades através dos nomes que “as coisas” possuem.

Este episódio ficou recolhido em algum canto de minha memória como se nunca tivesse acontecido. Mas ele é real e reapareceu com nitidez em minha consciência, como se sempre estivesse presente, dia desses quando voltei a sentir o sabor desse episódio de minha infância, não o sabor amargo da humilhação, mas da representação e da necessidade de vermos quem somos e entender as habilidades desenvolvidas com a leitura e a prática do existir.

A gente age de acordo com o que conhece. Como quando eu achei que meus amigos não giravam a catraca porque não tinham força e eu quis exibir o que achava que era minha qualidade. A força física era a que eu via em mim, a única. Durou muito tempo essa minha percepção, equivocada, sobre mim mesmo. Já era adulto quando comecei a reconhecer outros atributos e a perceber, igualmente, defeitos que imaginava não ter. Somos, no fim das contas, essa combinação de atitudes antagônicas. Resta unicamente a empatia para uma coletividade menos carregada de rancor. No fundo é isso apenas o que importa, um cotidiano combinado de obrigações e prazeres com pesos equilibrados para a jornada ser suportável.

Não tem sido fácil, confesso… O convívio com quem não enxerga além do próprio umbigo tem me tirado a paciência. Está difícil o cotidiano. E aqui cito três exemplos que, imagino, atinjam outras pessoas:

1) O motorista que conduz numa velocidade bem acima da permitida e ultrapassa pela direita ou o que vai muito devagar pela faixa da esquerda;

2) A pessoa que posta sua saudade desse homem (foto de Bolsonaro) e a que cultua outra (foto de Lula) como se fosse uma sagrada entidade;

3) O cara (que já passou dos 40, mas se comporta como se tivesse 15) que faz bolão sobre a data da morte de um dos ícones da cultura nacional que corajosamente, e didaticamente, não esconde o câncer que lhe acomete (caso de Rita Lee). A lista é grande… Tá difícil!

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