Fichamento n° 3

Compartilhar

“A Balada do Cálamo” é daquelas prosas que estão mais próximas da poesia do que da narrativa e retrata os devaneios de seu autor a partir de lampejos de sua vida que insistentemente estão em sua memória. 

No caso, a memória é de Atiq Rahimi nascido no Afeganistão de onde saiu aos 10 anos quando seu pai, então pessoa de destaque na sociedade, sendo membro da Suprema Corte, é preso. Vai para a Índia e enfrenta seus hormônios e a vastidão de elementos que ajudam a definir seus adornos. E chega na França, já adulto, onde é acolhido ao pedir “asilo cultural” numa época em que o berço da civilização ocidental acolhia todos por “asilo político”.

Autor de vários livros, muitos publicados no Brasil, Atiq Rahimi se tornou conhecido por sua atuação como cineasta, cujo a matéria-prima é a linguagem visual. 

“A Balado do Cálamo” é quase um lamento por essa escolha senão uma justificativa, uma espécie de explicação, das razões de não usar a linguagem verbal. Uma autoexplicação. O livro é de uma voz só, a interna, de Rahimi, como se estivesse na frente de um espelho falando a si próprio. Não é como um monólogo onde o autor, via seu intérprete, está num palco olhando de frente para seu público. 

Atiq Rahimi transforma seu leitor, neste “A Balada do Cálamo”, numa espécie de voyeur (a pessoa que gosta de observar os outros sem participar, tirando fotos ou gravando momentos íntimos ou privados de outros indivíduos).

Rahimi se expõe desde sua infância em Cabul a partir do aprendizado do alfabeto árabe, a partir do Aleph, a partir, enfim, do seu cálamo (instrumento de escrita, tipo uma caneta tinteiro, feito a partir de um canudo da vegetação cálamo) até chegar em sua vida adulta e maturidade artística.

O termo balada do título eu entendo no sentido de passeio. O livro é essa viagem pelas lembranças de Rahimi, mas acima de tudo o livro é sobre o que o autor frisa em uma das principais passagens de sua caneta: A impossibilidade de se falar do exílio, uma condição unicamente capaz de ser vivida, sentida. Rahimi tenta nos contar o que sente e, na minha visão de leitor, acho que consegue.

“A Balada do Cálamo” é um livro de prosa a ser lido como um de poesia, uma leitura que nunca acaba, uma leitura nova a cada releitura, um livro a se ter na cabeceira e ler antes de dormir, como se fosse uma oração divina muito em razão dos aforismas que recheiam suas páginas. 

Não chamasse “A Balada do Cálamo”, o livro de Atiq Rahimi poderia muito bem se chamar “A Canção do Exílio”, nome do poema lírico de Gonçalves Dias que enaltece as qualidades do Brasil a partir de sua estada em Coimbra, Portugal. Atiq Rahimi, mesmo após passar por sua aculturação na França, segue sendo afegão.

Não se gostei do livro, mas gostei muito de ter lido. Lendo o livro compreendi que o desconforto que sinto em alguns dias, aquele sentimento sem causa lógica, é tão somente o sabor do exílio que me sobe à boca.

PS – Este é o terceiro livro que li neste ano. Um projeto anunciado no Fichamento nº 1.

Comentários