Dia desses, uma moça em licença maternidade com o bebê recém-nascido voltou ao local de trabalho para assinar papéis, entregar atestados e regularizar seu ponto com a filha no colo e o óbvio aconteceu: a presença do bebê despertou a curiosidade dos seus colegas de departamento.
Alguns dias depois, uma outra colega de trabalho, em férias, também veio resolver o mesmo tipo de problema burocrático no departamento de Recursos Humanos, trouxe o seu cãozinho e a presença do bicho provocou uma espécie de comoção e frisson entre os mesmos colegas de trabalho. Algo muito mais barulhento do que o bebê.
Não pude deixar de notar. O que faz jovens se interessarem mais por um cachorrinho do que por um bebezinho?
Me incomodou tanto essa situação que comentei o fato com um colega, da mesma faixa etária que a minha: Dio mio, fiquei anacrônico! Ele gargalhou e disse: observei o mesmo fato. E brincou, talvez seja a hora de investir em uma loja de PET.
Não é de hoje que essa humanização de cães e gatos me incomoda. Me lembro que ainda era criança quando o Sílvio Santos pegou no pé de Araci de Almeida, uma das grandes intérpretes da música brasileira na época de ouro do rádio, que para ganhar a vida virou jurada do programa de calouros mais famoso do domingo. Sem filhos, Araci tinha cães e os tratava melhor do que muito ser humano. Me lembro de que isso ficou marcado na minha memória e em tom de indignação. Como pode alguém tratar um cachorro melhor do que um ser humano!
Em casa, o lugar de cachorro sempre foi no quintal. O Boi (bói e não boi se pronunciava) raramente saia e quando saia eu me lembro de chorar desesperadamente achando que ele nunca voltaria para casa. Sua comida era o que sobrava do prato das pessoas da casa e era servida numa folha de jornal.
Na primeira república (casa onde pessoas dividem os custos e moram juntas, em especial estudantes universitários) em que morei, um amigo paulistano, o Paulo, tinha um pastor alemão todo preto. Era o mascote da casa de dez jovens homens e não raro ele dormia na cama dele. Paulo não entendia como eu pouco me importava com seu cachorro. E eu pouco entendia como Paulo tanto gostava dele.
Aos poucos fui percebendo que a dedicação do ser humano aos cães, muito mais do que aos gatos, representa a sua projeção no bicho de estimação: ansiedades, expectativas e buscas de amenizar carências.
Numa das especializações que fiz depois da faculdade de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, tive uma disciplina chamada Psicologia da Comunicação e nela uma curso inteiro baseado no que o professor dividiu entre as características e antagonismos do Cachorro e do Gato. Ao caráter da pessoa era aplicada a similaridade de fidelidade, lealdade, foco.
Odeio quem judia de bichos. Entendo que quem assim procede é acometido de algum tipo de psicopatia séria. A crueldade com outro ser vivo, mesmo ele sendo um animal, revela a intimidade do agressor de modo que a sociedade deve ter atenção com ele nos termos do que diz a lei.
Me incomoda, porém, quem humaniza os bichos. Num grupo de rede social chamado “Animais Achados e Perdidos em Sorocaba”, um integrante do grupo assim escreveu hoje: “Bom dia, resgatamos essa menina na Av. Nogueira Padilha na altura do Supermercado Boa, é um filhote labrador muito dócil. Me ajudem a achar os donos ou se alguém quiser adotar, pois não tenho condições de ficar com ela.”
Menina?
Isso é demais para mim!
Menina é substantivo feminino que significa criança ou adolescente do sexo feminino; garota.
Um animal é cadela, igualmente substantivo feminino, a fêmea do cão.
A colega de trabalho que trouxe seu cãozinho o chamou de filho. Sim, o cãozinho saiu correndo e ela o repreendeu: filho, venha aqui e o danado voltou e ela o pegou no colo.
Há uma charge eletrônica, imagino que seja da Porta dos Fundos ou de algum similar, onde um mendigo tem um cartaz dizendo que está com fome e sem comer há dias. Uma madame entende que se trata do cachorro que está com ele, fica com dó, compra comida e ele pergunta algo do tipo: e pra mim? E ela fica brava e sai batendo o salto…
Havia um pudor das pessoas em relação a mostrar em público a intimidade que tinham com seus animais. Mas a publicidade subliminarmente imbutida primeiramente nos filmes de cinema, depois em novelas, depois em pequenos quadros nas redes sociais foi tratando de tirar a vergonha das pessoas e elas passaram a levar seus bichos à cama, ao sofá e agora até mesmo à mesa de refeição, não apenas em casa, até mesmo em restaurantes. Há espaços para eles nos shoppings, supermercados e, se depender da Câmara de Vereadores de Sorocaba, haverá lei até mesmo para eles iriem aos hospitais.
Sorocaba, que já foi a terra dos hospícios, haras, restaurante japonês, farmácia é, atualmente, a terra dos PETs. Há dois ou três a cada quarteirão. Até o vitorioso time de Fut-Sal da cidade, campeão mundial, que abriga o melhor jogador do mundo, leva o nome de uma marca de produtos PET. São bilhões envolvidos nisso. E, asseguro, ao menos 25% investidos e reinvestidos em publicidade para que todos sintam-se sem vergonha em amar seu “filho” ou sua “menina”… Blágh!