Compartilhar

Mesmo nestes dias de calor infernal, quando abro a porta da frente de casa e deixo aberto as portas de vidro, no fundo, que dão pro quintal, se forma uma corrente de ar refrescante. Mesmo sem vento.

Sábado a porta estava aberta e então um som de voz de mulher invadiu a sala. Uma voz de susto. Um grunhido. Algo absolutamente inusitado.  Não é uma casa de rua, mas de condomínio. Não é um condomínio tipo vila militar, mas de grandes terrenos. Não é um lugar de circulação de pessoas aleatórias.

A mulher berrou porque tropeçou no tapete da entrada de casa e quase caiu. Ela viu a porta aberta e nem passou pela cabeça dela em chamar alguém, simplesmente entrou. Para chegar na porta ela caminhou por uns 30 metros desde a calçada.

Sim, eu estranhei sua presença na minha área de entrada de casa, mas não me assustei. Ela se assustou quando me viu. 

Ahhh, expressou-se ela numa voz rouca e trêmula.

Eu preciso de um banheiro, ela me disse. Eu estou com meu marido ali, e apontou um carro no meio do terreno no outro lado da rua. Ele trouxe um mecânico pra ver se arruma. 

O senhor mora aqui apenas de fim de semana, ela me perguntou. Aqui é longe, ela me afirmou.

Ela é uma mulher que aparenta bastante idade. Ela tem apenas um dente na boca e usa uma maquiagem que deixa sua cara um tanto caricata. Ela quis entrar na primeira porta que viu, que daria num quarto, e eu a impedi. Minha tendência primeira foi a de mandá-la embora e chamar o segurança. 

Ela me pediu, então, com uma voz mais amistosa se poderia usar o banheiro. Eu mostrei onde fica o lavabo. Ela, pela idade, sobrepeso, falta de preparo físico ou todas essas condições juntas, teve muita dificuldade para descer a escada. No lavabo demorou, na minha avaliação. Quando saiu, não voltou para o caminho de ir embora. Ela se achou no direito de ir ao cômodo que viu. Achei um insulto esse comportamento dela. Ela percebeu e quis se explicar: Nossa, quantos livros! Bonito aqui.

Eu agradeci, bastante secamente, e disse: A saída é por aqui, apontando-lhe a porta. 

A dificuldade dela em subir a escada foi maior, como era de se imaginar, doque quando desceu. Eu a segui de perto para o caso dela cair. Ela chegou na porta e eu lhe dei uma garrafa pet com água gelada. Ela agradeceu. Eu não esperei até ela chegar do outro lado da rua para fechar a porta.

Sair da rotina não me transtornou. Eu sei que viver é imprevisível, incontrolável e acidental. Fosse essa senhora um bandido e ele teria feito o que quisesse. Por outro lado, fiquei pensando que tipo de pessoa é essa que entra quando vê uma porta aberta. Que tipo de pessoa tem apenas um dente na boca. 

A mulher quase caiu ao tropeçar no tapete e esteve perto de cair da escada… Fico imaginando a dor de cabeça que uma queda dela poderia ter me causado, tendo que chamar o Bombeiros e, sabe-se lá, que responsabilização teria recaída sobre mim. Fico pensando nos ferimentos que ela podia ter causado a si.

A porta seguirá aberta. Melhor correr mais riscos ao calor. Queria saber o que ela contou sobre essa sua experiência. Tomara que ela tenha alguém interessado em saber pelo que ela passou no sábado passado. Eu, profundamente, lamento não saber. Desde o ocorrido penso nisso e invento respostas. Aposto que muito pouco da história dela coincide com a minha embora tenhamos simultaneamente tido a mesma experiência.

Comentários