A tradição do bar e a perda de identidade com a nossa cultura

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A casa onde morei por 14 anos, na Vila Santana, na esquina das ruas Moreira Cabral com Souza Moraes – onde atualmente mora a família do filho mais novo do meu irmão mais velho – tinha, como ainda tem, um salão na frente.

Me mudei para ali em 1970, quando tinha 3 anos. Na minha memória, fui levado para lá no colo do meu nonno. Nossa antiga casa era na mesma calçada, no meio do quarteirão da Moreira Cabral entre a Souza Moraes e a Rodrigues Alves. Saí da casa dessa esquina aos 17 anos para fazer faculdade em Campinas, cidade de onde saí diplomado e fui fazer a minha vida, como se diz.

Naquele salão da frente, na esquina, meu pai ganhava o sustento da família de cinco filhos. Ele ficava a maior parte do tempo em seu açougue, no Paredão da Light, na rua Nogueira Martins, no Centro; minha mãe ficava boa parte da manhã no bar de casa, e meu irmão do meio praticamente ficava a tarde até que meu pai chegava quando já começava a entardecer e até fechar.

A vida não era fácil. Só se andava a pé ou de ônibus. Não havia vitrola, mas sempre houve rádio e TV. Quem mais sofria era minha mãe no tanque, pois não tinha máquina de lavar roupa. À mesa, sempre havia fartura. Carne, que era algo caro, por meu pai ser açougueiro, nunca faltava. Asseguro, meus pais deram a todos os seus filhos uma vida bastante digna.

Do bar havia uma porta ligando àquele ambiente diretamente à sala da minha casa. Uma passagem, quase mágica, de um ambiente íntimo, aconchegante e com o cheiro de minha mãe para um não-lugar que é o salão de um bar, onde pessoa de todo tipo de índole faz uma pausa antes de seguir seu caminho.

O bar, um bar qualquer, em Sorocaba, em Dublin, em Londres, em La Paz, no Texas, na Comune di Pojana Maggiore, seja onde for, é um consultório psiquiátrico, um confessionário, um espaço mágico, uma espécie de portal, onde o frequentador se desconecta da realidade de onde veio (seu trabalho, por exemplo) até chegar ao seu destino, a sua casa; ou de sua casa até voltar à sua casa, que seja.

O próprio nome, bar, aliás, vem disso: No século 18, na França, nas tabernas, locais onde eram vendidas as bebidas para deixar as pessoas mais à vontade e se esquecerem dos problemas, havia uma “barra” que era do tamanho do balcão. O objetivo da “barra” era dar um suporte para o freguês mais bêbado se segurar e a forma francesa de falar barra em português, assim como em francês também, virou simplesmente bar.

Esse bar, patrimônio da humanidade, vem sendo desmoralizado. É um lugar de pinguço e vagabundo. Só tranqueira vai no bar. Trabalhador vai na igreja e não faz paradinha em bar.

Se isso tudo for verdade, o que duvido, sinceramente, ainda assim o bar é prova de sua importância pois é apenas um retrato de nossa sociedade. E como todo retrato espelha o que somos e quando vemos o que não gostamos – principalmente se somos nós – temos o instinto de negar que o que vemos sejamos nós que estejamos aparecendo ali.

Uma espécie de nuvem me separa daquele bar lá de casa, mas me lembro do Zé Ceratti pedindo a pizza que minha fazia – que aliás nunca mais comi em lugar nenhum, amanhecida era muito melhor – ,do Marco Chita, que dia desses buzinou para mim quando passou pela rua; do Magão, do Djalmão que foi da Polícia Militar; do Tatu; do Cão. Gente que lembro do rosto, mas não do nome. Todos pais de família.

Tudo isso me veio à cabeça ontem á noite, quando no grupo “Velha Guarda”, onde alguém teve a brilhante idéia de reunir 27 jornalistas das antigas, alguém postou um vídeo de uma câmera de segurança do bar do Melo na rua Campos Sales, na Vila Assis, na Zona Leste. Dia 14, portanto segunda-feira passada, 23h22, dois sujeitos descem de um carro, com revólver na mão, e limpam todos – como mostra a sequência de fotos que copiei e posto aqui.

Fiquei pensando se tal situação tivesse acontecido no bar lá de casa, 45 anos atrás, quando eu tinha apenas 7 anos.

Fico pensando nas pessoas que creem que ter uma arma, e matar estes dois babacas como solução, se passa pela cabeça delas que elas se tornariam, em segundos, elas próprias assassinas e o quanto o fato de serem assassinas mudaria para sempre a vida delas.

Fico pensando se o Melo abriu seu bar hoje para ganhar seu pão de cada dia. E com qual espírito.

Fico pensando: Perdemos a identidade com a nossa cultura. Quando dois imbecis se sentem confortáveis para roubar três pessoas num bar é porque eles perderam, ou nunca tiveram, a qualidade de sentirem-se idêntico a quem está dentro daquele espaço.

E verdade seja dita, enquanto isso está acontecendo na Vila Assis, seremos todos tolerantes. Quero ver quando ocorrer num bar “descolado”, vou dizer assim, se já não será demasiado tarde.

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