Quando ela entrou na sala de aula pela primeira vez, todos nós paramos de falar e olhamos para seus passos entre a porta e a mesa no canto, embaixo da janela.
Um silêncio ficou suspenso no ar.
Todos os meninos, eu particularmente a bem da verdade, estávamos numa espécie de transe ao ver diante de nós uma morena jambo num vestido de algodão cru, o que realçava a sua cor.
Eu sou a professora de Geografia (ou de História?)…
O anúncio, vindo de sua boca, criou um zum-zum-zum. Como? Ela parecia mais uma colega, uma aluna qualquer. Não tinha cara de dona, que era como chamávamos as professoras.
Era o ano de 1983, último ano do colegial (atual Ensino Médio) noturno na Escola Estadual Júlio Bierrembach de Lima, bairro de Santa Rosália, as duas últimas aulas de sexta-feira. Não havia professora ou professor que segurasse aluno na aula na sexta-feira depois das 21h. Sexta-feira era dia de ir no bar do Hélio. Era dia de ir num bar (não me lembro o nome) que ficava numa espécie de palafita no terrão enfrente ao CIC, onde em junho acontecia a esperada Festa Junina anual.
Mas ela mudou isso. Ela fez um acordo conosco. Nós ficaríamos na aula e ela ia com a gente no bar. Foi duas vezes no bar, mas fomos em todas as suas aulas até o final do ano. Ela nunca deu bola pra nenhum aluno. Digo no sentido que os alunos desejavam, de namorar, digamos assim. Ela sabia qual era o seu lugar e tinha habilidade em nós colocar no nosso.
Eu e ela acabamos frequentando o mesmo bar, O Sal da Terra. Ela era freguesa e tinha a sua turma. Eu era um diletante que só olhava e nunca me sentava, pois era duro demais para ter trocados para pagar qualquer conta.
Eu segui minha vida e nunca mais me encontrei com ela. Nem mesmo no Facebook éramos amigos.
Soube quando ela se casou com o Miguel, primo do meu vizinho Joe, na Vila Santana, e irmão do Amaral, o único cantor de ópera sorocabano falecido recentemente como o próprio Miguel me contou no velório do pai da Vânia, Tânia, Di. Soube quando eles se separaram. E não soube de mais nada até que na noite de sexta-feira alguém postou uma mensagem de despedida dela.
A mensagem tinha o nome e uma foto. Uma imagem que me lembrava ela. De como ela havia ficado 40 anos depois. Ainda assim fiquei na dúvida. Apenas tive certeza quando li a mensagem do Miguel, comunicando sua morte e agradecendo-a por ter lhe dado uma família. A Fátima tinha morrido. A Fatinha, como seus amigos a chamavam. Maria de Fátima Carvalho Vieira. Uma educadora que esteve à frente do seu tempo. Uma mulher preocupada com as minorias. Uma pessoa que irradiava empatia, era doce, mas azeda.
Fátima nasceu em outubro de 1960, morreu com apenas 63 anos. Eu em 1967. Ela sempre teve cara de menina. Ela fez parte da fundação do PT em Sorocaba. Eu era da Convergência Socialista, quando adolescente, entre 14 e 15 anos. Ela, que em alguns meses do ano era 7 anos mais velha do que eu e em outros apenas 6, me convidava para ir ao PT, mas eu nunca me interessei.
Sua morte, tão precoce, me surpreendeu. Ela era alguém para viver muito… Fátima era irmã do Bira, o delegado regional do Tribunal do Trabalho. Fátima deixou uma filha e um filho. Ambos têm motivos de sobra pra se orgulhar da mãe.