Drauzio, Suzy, Fábio e a complexidade de nossa sociedade

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Drauzio Varella – um dos mais influentes personagens da vida pública brasileira, especialmente por sua capacidade didática de explicar doenças aos seus telespectadores em programa de televisão – está no olho do furacão desde que foi desvendada a história do crime de uma das personagens de sua reportagem, veiculada no Programa Fantástico da Rede Globo, sobre transexuais nos presídios. Um dos casos que mais sensibilizou os telespectadores foi o da transexual Suzy, que não recebe visitas na cadeia há oito anos.

A reportagem foi dedicada à dor e isolamento de quem – entre milhões de pessoas, como estamos vendo nos últimos anos – não se encaixa nos modelos bíblicos do Homem e Mulher. Este tema, dos seres humanos homo, bi, trans sexual, é um dos mais caros entre os cidadãos mais conservadores que, publicamente, negam a existência de quem não se encaixa nos modelos Homem/Mulher.

O site O Antagonista – que reúne informações de combate à chamada pauta da Esquerda e enaltece aos valores do chamado universo da Direita – decidiu responder a uma pergunta que ficou sem reposta na reportagem de Dráuzio: Por que a transexual Suzy está há tanto tempo sem receber visitas? Pelo motivo de estar preso e cumprindo pena: De acordo com o processo contra a presidiaria e a Secretaria da Administração Penitenciária, o motivo da prisão de Rafael Tadeu de Oliveira dos Santos, nome de batismo de Suzy, foi pelo fato dele estuprar e estrangular Fábio dos Santos Lemos, de 9 anos, em maio de 2010.

Os militantes conservadores se aproveitaram do fato para colocar em voga seus temas preferidos: responsabilizar a Rede Globo de Televisão por desvios morais do brasileiro; enfatizar a pena de morte ou prisão perpétua; e propor que a sociedade retorne ao seu modelo, como vou dizer, preto no banco, sem nuances, como se a vida fosse assim.

Reproduzo aqui esse pensamento através da postagem da sorocabana Eliana Daud (eu a conheci quando ela esteve casada com o jornalista e publicitário já falecido Rui Albuquerque). Assim ela se expressou no Facebook: “Meu total apoio e os meus profundos sentimentos às famílias das vítimas do MONSTRO ESPECIALIZADO EM CRUELDADE (vulgo tia Suzi), entrevistado pelo Drauzio Varella. Não assistí ao programa mas me informei, com prudência, nas redes sociais. Meu repúdio à decadente emissora q agiu DE MÁ FÉ , meu nojo à produçao imunda, inconsequente e irresponsável do programa, e a minha indignação à carta equivocada de esclarecimento do médico. Sim, ele é excelente médico e de louvável exercício da profissão mas essa história não o exime da parte que o responsabiliza do fato, afinal o Drauzio é lúcido, não? Pisou na bola. E feio. Não há desculpas. Que as familias ligadas às vítimas, recebam a devida retratação e que O MONSTRO continue recebendo a “merecida” punição. Lamento muito pela corrente do bem que correu entre as crianças e doadores. As pessoas do bem acreditaram. Que a mesma corrente do bem seja revertida para a solidariedade dessas famílias. Retratação pública, já!”

Drauzio Varella, que abraçou a presidiária trans na reportagem exibida, publicou uma nota de esclarecimento em sua rede social onde afirma, em resumo: “Não perguntei nada sobre os delitos, sou médico e não juiz”.

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais, em resposta a toda essa polêmica, aborda alguns pontos, mas um me chama a atenção: “(…)os radicais que vem replicando o caso tem como intuito desumanizar mulheres trans em qualquer instância, especialmente as encarceradas, e colocar todas nós travestis e mulheres trans numa posição igual a de bandidos de alta periculosidade, crueldade e frieza. Reforçando um perfil violento que a sociedade historicamente imputou a nossa população. (…)E com relação ao crime, a Suzy não teria direito a resssocialização? Por quais motivos? O fato de ela estar presa não seria o suficiente para reconhecermos que, no estado democrático de direito, ela estaria sendo punida pelo que cometeu? Não é disso que trata o direito penal? (…)É preocupante a ideia de que a vingança tome o lugar da justiça por pessoas incapazes de entender a complexidade do processo punitivo, para que se destile todo racismo e a transfobia contra a nossa população. (…) O Estado já a condenou, não cabe a nós condená-la novamente!!!”

A complexidade deste tema me leva a algumas perguntas:

  • A prisão recupera uma pessoa que matou uma criança?
  • A prisão perpétua ou pena de morte serviria de exemplo para inibir que alguém cometesse algum crime?
  • Ao querer fazer o bem (mostrar o sofrimento de uma pessoa isolada dentro de um presídio) é justificável esconder o mau que ela fez?

E também a algumas certezas:

  • Muito mais “homens” e “mulheres” mataram barbaramente seu semelhante do que trans, até porque são infinitamente mais “homens” e “mulheres” em nossa sociedade do que trans.
  • Fechar os olhos para os fatos (há muitas pessoas que não se enquadraram nos gêneros bíblicos) é de uma crueldade e imbecilidade sem fim.

E, por fim, a dúvida:

Um médico atende, mesmo, apenas a um humano, ou seja, a um ser desconectado de ideologia, vontade, opiniões? Me lembra a piada que li de uma pessoa num carro adesivado com seu candidato preferido (podem usar o 13 ou 17), perdida numa cidade, perguntando a um morador (que odiava o candidato do visitante) como chegava a um determinado endereço. E o morador, num esforço em dar informação, acaba ensinando o visitante a chegar em local errado.

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