O dia em que Lampião venceu Rambo ou Ode ao nordestino

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Me interessei por Bacurau porque é um filme de diretor Kléber Mendonça Filho. Sou fã da estética, temática e qualidade do seu trabalho.

Quando o filme foi anunciado na disputa oficial da Palma de Ouro, em Cannes, e ganhou página inteira no Le Monde, Le Figaro, Liberation, alguns dos principais jornais do mundo, que são de Paris, ao estrear na França, tive certeza que iria assistí-lo.

Mas demorei o máximo que pude para fazê-lo. O frenesi em torno do filme. Os comentários apaixonados. A apropriação “esquerdista” que foi feita do filme me incomodou demais. Resisti o máximo que pude, enfim… Até que vi.

Em Bacurau, Kléber Machado Mendonça ganha a co-direção de Juliano Dornelles e também divide com ele o roteiro, parece ter feito, de propósito, frise-se isso, que sabe fazer filmes do tipo “Velocidade Máxima”, “Rambo” , “Risco Total” e demais do gênero que, confesso, odeio.

A primeira cena de Bacurau, um caminhão pipa descendo a toda velocidade numa estrada do interior de Pernambuco, não fica devendo em nada para os road movie dos filmes de Hollywood. Pura emoção…!

Na sequência, quando chegam tiros, mortes e sangue para todos os lados, com cena de decapitação a faca que flerta com o trash, fica clara homenagem a Quentin Tarantino. Aliás, sequências fílmicas da mais alta qualidade.

KMF faz toda referência a este tipo de cinema pop, porém se mantendo fiel à estética do Cinema Novo, em clara devoção a Glauber Rocha, ou seja às suas origens.

Bacurau é uma aula de cinema. E só por isso merece ser visto.

Invertendo os perdedores

Falando propriamente da história narrada por KMF, vejo nela uma vingança. Nós, os terceiro-mundistas, que sempre nos danamos, dessa vez nos damos muito bem em Bacurau.

KMF faz com que os mocinhos – aqueles que historicamente vemos nos filmes que inundam os nossos cinemas e TV, os protagonistas dos filmes Estados Unidos – se danarem. É como se Lampião desse uma surra em Rambo e todos os demais personagens de Stalone, Schwarzenegger, Van damme e companhia. Os mocinhos viram bandidos e KFM enaltece o quão burro eles são.

O antagonista de sempre, dessa vez, em Bacuraru, o caboclo, o caipira, o morador do sertão, o nordestino, que fomos acostumados a ver como ignorante, KMF nos apresenta como um sujeito antenado, esperto, inteligente. Numa cena, aparece um drone em formato de disco-voador e a impressão que dá é que o espectador pensa, olha lá o coitado acha que aquilo é um disco-voador. Mas na primeira oportunidade, da boca do caipira, vem a explicação de que aquilo é um drone. Numa outra cena, o professor usa seu tablete conectado ao Google para dar suas aulas. Na maioria das cenas, os moradores estão conectados ao whatsapp.

Bullying sulista

Ainda é perceptível em Bacurau o quanto o Bullying – a prática de atos violentos, intencionais e repetidos contra pessoa indefesa, que podem causar danos físicos e psicológicos às vítimas – praticado pelos paulistas (talvez pelos sulistas de um modo geral) contra os nordestinos que para cá migraram os machucam. Cabeça chata, lerdo, peão… foram alguns adjetivos usados e, em alguns lugares ainda o são. Em Bacurau, no contexto da trama, KMF pega um casal de paulistas (embora ele os trate como sulistas) que na relação com o grupo dos Estados Unidos diz: nós (o casal) somos iguais a vocês (os estadunidenses); somos de uma região rica, desenvolvida… E um dos americanos, sentados à mesa com eles, ironicamente pega um binóculos e diz que não são iguais não, pois eles são brancos. Um outro diz: olha o nariz dela, achatado. E os brasileiros se olham assustados, pois se vêem como sendo dos Estados Unidos, mas não se reconhecem como brasileiros do Pernambuco. Na fala das personagens, ainda, fica evidente o quanto os sulistas são traíras, gente que não dá para confiar. Uma crítica ácida e pesada aos sulistas. Uma ode ao nordestino!

Resistência

A temática dos filmes de KMF gira em torno da expressão da identidade de uma nação, da sua verdade. Em 2016, com Aquarius a opressão do sistema da força financeira contra os menos favorecidos ganhou o tapete vermelho com o protesto dos atores do filme. Era o momento do impeachment de Dilma. Em 2019, se esperava algo parecido com Bacurau, mas KMF disse que seu filme, em si, era o protesto.

Com esse seu discurso, ele direcionava o olhar do espectador para o lado politizado do filme. E, na minha opinião, conseguiu.

Bacurau, quando enaltece o Pernambuco, o nordeste, o nordestino, por consequência enaltece o brasileiro e o Brasil. A sua capacidade, a inteligência do seu povo representada na história do filme e sua capacidade de domínio tecnológico representada no filme em si, naquilo que KMF apresenta como resultado.

Neste sentido, portanto, Bacurau é a expressão maior de resistência ao governo do presidente Bolsonaro que, a cada ato, se transforma num lambe botas de Trump. É constrangedora a política internacional do atual governo para com os Estados Unidos. Me parece, inclusive, que até Trump se sente constrangido diante de tamanha submissão dos Bolsonaros.

Famoso curiango

No filme, Bacurau é o nome do local onde se passa a trama do filme. Na vida real é o nome de um pássaro: Bacurau é uma ave noturna, também é conhecida como curiango, ju-jau, amanhã-eu-vou, mede-léguas e acuranã. Ela pode ser encontrada do sul do México até o norte da Argentina. Ela é facilmente encontrada no chão, onde usa as folhagens para se camuflar. No Nordeste, o nome da ave também é usado para nomear as linhas de ônibus noturnas e gíria para pessoas que têm hábitos de sair a noite. Em Sorocaba, quando eu era criança, ainda havia curiango na Vila Santana.

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