Sábado de aleluia 

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A Sexta-feira da Paixão exerceu um fascínio sobre mim como poucas outras histórias. 

Eu tenho essa consciência apenas hoje em dia, lembrando que eu entendia a história de Jesus e Pôncio Pilatos de modo literal. 

Uma Sexta-feira da Paixão marcante aconteceu quando faltavam cerca de dois meses para meu aniversário de 9 anos, em 1976.

Não me lembro qual foi o almoço daquela sexta-feira daquele ano, mas não teve carne. Meu pai era açougueiro e todos dias se comia carne em casa. Se não era bife, linguiça, carne moída, era frango (todo domingo), sardinha (praticamente toda quarta-feira). Mas na Quaresma, de sexta-feira, não havia carne. Dentro de casa, tinha que se respeitar o silêncio. Na rua, não. 

Na Sexta-feira Santa de 1976, minha mãe saiu de casa por volta das três da tarde. Estava indo à igreja. Me chamou, mas eu, que a acompanhava em todos os lugares, disse que ia ficar brincando. Tinha um monte de crianças na calçada de minha casa. Brincavam de saquinho, amarelinha… Então você olha ele, disse minha mãe pra minha irmã mais velha.

Não sei o motivo, coisa de criança, larguei a brincadeira e corri atrás de minha mãe. Alcancei-a quando estava quase chegando na Santa Rita. Peguei na mão dela e entramos.

Não eram os freis franciscanos que conduziam a cerimônia, mas o Bistão. Ele era um leigo, de voz potente, e um exímio contador de histórias. Ele fazia a entoação e eu ficava vidrado… “Naquele tempo…” e então começava a história. As histórias que eu ouvia começavam com “Era uma vez…”, não essa.

Essa era uma história de terror puro!

Jesus, pra mim, era só um nome. O nome de um homem arrancado da mãe, arrastado por uma multidão enfurecida, condenado por poderosos, coroado com espinhos e pregado na cruz com prego e martelo. Pôncio Pilatos, um nome tão estranho, era a personificação do mal. Uma pessoa que lavou as mãos e não quis saber da verdade. Eu, que estava grudado em minha mãe, apertava forte sua mão a cada entoação de terror do Bistão.

Eram 14 estações. Ao final de cada uma, enquanto os fiéis caminhavam de uma imagem à outra para então se iniciar o capítulo seguinte da história, eram rezados Ave Maria e Pai Nosso. Era como se eu fosse personagem da história. Não era apenas um leitor. No Catecismo a história já estava lá, para cada criança. Mas na Via Crucis, a voz do Bistão, potente e grave, subindo e descendo era sem igual… Dava sentido à narrativa.

É evidente que ali, na interpretação do Bistão, as histórias entraram em minha vida, onde estão até hoje.

Naquela sexta-feira, quando voltamos para casa, já noite, minha irmã e irmãos estavam muito bravos, pois eu havia “sumido”. Eu, quando corri atrás de minha mãe, não avisei minha irmã que havia mudado de ideia.

No dia seguinte, Sábado de Aleluia, os “grandão” da rua já sabiam onde havia um Judas a ser malhado. Peguei um pedaço de pau, que um dia havia sido cabo de alguma vassoura, e acompanhei a turma. Não era fácil de acertá-lo, sempre estava à altura de quem já tinha 13, 14 anos.

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