No início da noite de quarta-feira, parei meu carro no semáforo no cruzamento das avenidas Paulo Emanoel com Elias Maluf no bairro Wanel Ville. É um dos locais de maior movimento de veículos de Sorocaba, um semáforo de três tempos e entre o Verde e Vermelho se passam quase 3 minutos. Um tempo suficiente para eu ver a cena ao meu lado, no canteiro central da avenida.
Um jovem, arrisco a dizer que tinha entre 18 e 23 anos, bem vestido, banho tomado, bem asseado, camiseta polo, se mantinha ereto, em pé, e se dirigiu a outro homem, esse esparramado no chão, imundo, pés descalçados e cascudos: Se levante, disse o jovem. Sem levantar a cabeça e olhar para a boca de onde havia partido a ordem, o homem tentou se levantar, mas não aguentou com o peso do próprio corpo e caiu. O jovem, novamente foi imperativo: tente mais uma vez. Eu percebi que o mundo girava na cabeça do homem no chão, até ele conseguir ficar sentado. Eu olhava atentamente. Havia descido o vidro e o jovem, então se dirigiu a mim, ríspido: tá olhando o que curioso? Antes que eu esboçasse alguma resposta, o jovem voltou a dar sua atenção ao homem no chão. Ele se mantinha em pé e o homem sentado no chão. E ele perguntou: ocê qué cumê? O sotaque da sua voz ao fazer esta pergunta deixou claro que nem um e nem outro eram de Sorocaba. O jovem, num tom de voz educado e conciliador, bastante diferente da primeira vez que se dirigiu a mim, que seguia sentado no banco do meu carro esperando o sinal ficar verde, me disse: é meu pai. Eu dei um sorriso e com a insistência das buzinas dos veículos atrás do meu, parti.
Uma cena comovente!
Primeiramente quero falar do ponto de vista do morador de rua (e no último ano essa população aumentou muito). Sempre que vejo alguém nesta situação me pergunto o que aconteceu para ele estar nela, pois eu entendo que morar na rua é o mais degradante que possa existir para um ser. Ter um espaço seu, cama, banheiro, é o mínimo para se manter a higiene e a sanidade mental. Estar ao léu é a negação absoluta de nossa cultura. E ali estava um pai, ou seja, alguém que em algum momento depois de ter sido filho de alguém se uniu a outra pessoa e gerou uma vida. E a cena me mostrava alguém bêbado. Não a bebedeira de alguém que encheu a cara num dia ruim. Mas um bêbado inveterado. Alguém desconectado da sociedade, da sua família e de si.
Do ponto de vista do jovem, a cena me comoveu pela bravura com que ele tentava reconectar o pai ao mínimo de civilidade. O ato de lhe oferecer algo para comer, revelou o quanto ele desejava que aquele homem literalmente se levantasse da sarjeta. Fico pensando no vazio que esse pai deixou neste filho ao tê-lo abandonado à própria sorte impedindo-o de se orgulhar de apresenta-lo a um amigo, namorada, professor… Um vazio que esse filho nutre com a esperança de vê-lo preenchido pelo simples ato de ir buscar esse pai no chão de uma avenida. Nem mesmo os olhos opacos, vermelhos, inchados desse pai fazem com que seu filho desista dele. De reconecta-lo.
Por fim, do meu ponto de vista, o mesmo de outras dezenas de motoristas que pararam naquele demorado semáforo do Wanel Ville, essa cena é comovente por conter todos os elementos de nossa cultura: o reprodutor (que mantém a espécie viva), o reproduzido, o desconectado, o conectado, o elo de amor capaz de dar sentido ao ato de se manter vivo, interessado, curioso, motivado e sonhando com o porvir, sem julgar o que foi, sem alimentar qualquer espécie de culpa.