Incapacidade de reconhecer ironia e provocação

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Escrevi a coluna “Dia da Consciência Negra e eu com isso”, dias atrás, e ela evidenciou uma situação que venho observando nos últimos anos: os leitores estão cada vez mais incapazes de reconhecer o que é provocação e ironia através das palavras. Oralmente, ainda, essa percepção está presente nas pessoas. Mas, nas palavras, é cada vez mais raro.

Quem é o responsável por isso?

Como quando cai um avião, não há uma única causa. Mas um conjunto delas. Uma cena que presenciei na saída do estacionamento da padaria Real, no Campolim, na terça-feira passada me ajuda a entender isso. Duas funcionárias do caixa do estacionamento (uma entrava em serviço e outra saia) conversavam quando eu passava e uma disse à outra: eu não escuto mais noticiário, só tem coisa ruim. E a outra respondeu, eu não vejo mais TV faz um tempão. Eu não entrei na conversa, saí e observei que as duas tinham em mãos smarthphones. E chamo sua atenção leitor: elas não escutavam mais o noticiário o que me fez supor que nunca leram ou se leram foi há muito e muito tempo atrás.

Me lembrei, então, que um antigo psicólogo sorocabano perguntou em sua página do Facebook a quem quisesse responder a seguinte questão: ouvi um boato de que o Extra vai fechar, é verdade? Se tratando de quem se trava fazendo a pergunta, ironicamente perguntei: você está fazendo um experimento com essa pergunta? No que ele foi literal em sua resposta: Não, é verdade mesmo. Oras, quem pergunta no Face sobre um fato de nossa realidade? Assim como as duas moças do estacionamento, esse psicólogo também não lê ou vê ou ouve noticiário, pois em todos os locais foi noticiado que o Assaí comprou o Extra. Não se tratava de boato. E muito menos de se fazer uma pergunta dessas em rede social.

Mas, um outro conhecido, jornalista, que vive de fazer assessoria de imprensa, na pergunta desse psicólogo, sobre o “boato”, deu a resposta que mais me assustou: é verdade, eu li na Internet. Leu onde? Internet é um sistema que permite a instalação de redes, como as sociais, onde as pessoas se agregam ou não. Não existe a Internet como local a ser acessado.

Então, a cereja do bolo. Uma moça entrou no carro da empresa onde trabalhava em Itapetininga para vir na sede dessa empresa aqui em Sorocaba e foi vítima de estupro até ser encontrada morta. Seu irmão foi fazer o reconhecimento do corpo e o jornalista o interceptou neste momento com a seguinte pergunta: Como foi encontrar o corpo de sua irmã? Como ele estava? Tinha alguma marca além dos hematomas?

Triste realidade!

Entendo que o abandono da leitura de literatura seja o responsável por este nosso momento. E ao abandonar os livros, os potenciais leitores foram para o Facebook, Instagram, Twitter onde o que prevalece são micros textos e abundância de imagens. Esse exercício atrofiou o mecanismo de conexão do cérebro. Alguém capacitado ainda vai se dedicar a estudar essa realidade e, estou certo, chegará a esta conclusão. O cérebro, mas principalmente suas sinapses, é como um músculo que precisa ser exercitado para não ficar flácido e manter-se forte, vivo e capaz de realizar suas tarefas. O cérebro dessa gente que se mostra incapaz de reconhecer ironia e provocação num texto derreteu.

E estou falando apenas dos males da forma das redes sociais em afetar negativamente as pessoas. Quando penso em conteúdo, aí o mal está definitivamente feito, pois o uso excessivo (quem diz quanto é isso?) das redes amplifica emoções de caráter negativo que afetam o bem-estar emocional e agrava sintomas da depressão, estresse e ansiedade do usuário.

A verdade é que me sinto, cada vez mais, falando sozinho. Por outro lado, essa realidade me ajuda a entender o sucesso que Bolsonaro e as mídias que adotaram o bolsonarismo conseguem com tanta facilidade.

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