Num dos vários grupos de whatsapp do qual participo, domingo à tarde, apareceu o meme: Evo Morales saiu do grupo.
E um amigo, escreveu: Deve estar hospedado na casa do fulano, provocando um colega que diverge dos membros do grupo unicamente por não dizer amém a todas as falas de Bolsonaro.
Ou do Deda, escreveu um outro, me provocando.
Ao que eu respondi: Você vota no amigo do Evo, defende o amigo do Evo como o melhor presidente da história do Brasil… e Evo ia ficar na minha casa, por quê? (Disse isso, pois até a onda de ultradireita que assola o país esse amigo defendia que Lula havia sido o melhor presidente da história do Brasil; hoje ele é bolsonarista fanático).
E esse amigo respondeu: Porque você é comunista no pensamento e socialista na prática da política.
E rebati: Você está enganado. Sou mais liberal do que você, no fundo. Só exijo uma coisinha: que todos tenham tido chance igual de se preparar, pois somente assim há mérito. Do contrário quem comeu proteína desde à origem, na barriga da mãe, leva muita vantagem sobre quem só comeu a farinha e o caldo de qualquer coisa…
E ele deu a tréplica: Está vendo. Isso é típico do socialismo. Cabe à sociedade, e não ao governo, ajudar aos que receberam menos proteínas.
E o assunto prosseguiu num tom mais sarcástico. Perdi a paciência, ele se ofendeu. Recuei, ele também. Mantivemos as aparências, digamos, civilizatórias da boa convivência de um grupo de whatsapp.
O grupo está tenso há meses. Há uma fé cega de que o governo Bolsonaro vai fazer o Brasil prosperar e isso vai ajudar, inclusive, os menos favorecidos, mesmo que eles sejam os últimos da fila para receber qualquer tipo de benefício, daqui uns cem anos. O clima ficou ainda pior com a soltura do Lula.
Dentro deste mesmo grupo, sem vergonha nenhuma, ao contrário, com bastante orgulho, as pessoas já defendem que haja intervenção militar no Brasil. No Facebook, igualmente, é bastante comum encontrar postagens dessa natureza. O “ato falho” (evidentemente intencional), seguido de desculpas, do 03, de defender um novo AI-5, disseminou em seus seguidores o ânimo em sair da toca para expor o desejo de uma intervenção militar no Brasil. Ou seja, a vontade – antes restrita ao mundo digital – ganha o mundo real. No vestiário da ACM um velho professor, na casa dos 70 anos, já aposentado, quase saiu em vias de fato com um ex-aluno, na casa dos 40, que defendia a ditadura: você sempre foi um cabeça dura, mas não achei que fosse tão burro, disse o professor, partindo para cima do aluno e teve de ser contido.
Há um ano, talvez um pouco mais, durante um dos episódios da coluna O Deda Questão, ao vivo, no Jornal da Ipanema, me lembro de ter chamado um ouvinte de imbecil por ele defender a volta do regime militar e defender o que o bolsonarismo representava. Aquele ouvinte, posso assegurar, naquele momento, era voz isolada. Hoje está bastante bem acompanhado.
Em setembro do ano passado, quando falava dos motivos de eu ser contrário a volta da ditadura, usei argumentos da jornalista Hildergard Angel: Não quero um país onde foi estabelecido o terror, onde a contrapropaganda era usada à exaustão e com sucesso. Onde (…) “subversivo” era todo aquele que pensasse diferente do poder. A qualquer denúncia anônima, agentes do Dops invadiam residências, vasculhavam tudo, e bastava encontrarem um livro de economia de Celso Furtado para a família inteira ser presa como agitadora. E as consequências, imprevisíveis. Não se sabe se sairiam vivos. Todos tinham medo de todos. (…) Este era o Brasil. Sobreviviam os que baixassem a cabeça, não vissem, não escutassem, não comentassem, num perpétuo “jogo do contente” (…) “Dedurava-se”, delatava-se, caluniava-se a três por dois, qualquer desafeto que atravessasse o caminho. O marido ciumento entregava como “subversivo” o vizinho, de quem desconfiava estar cortejando sua mulher…
Me lembrei do livro “Formas de Voltar para Casa”, do chileno Alejandro Zambra, que narra as memórias de um adulto sobre sua infância feliz e se descobre indignado com isso, pois sua infância se dá sob o sangrento regime de Pinochet.
Como é possível fechar os olhos à brutalidade da realidade?
Nossa realidade já é bruta.
Há apenas 18 meses, era uma ou outra voz a favor da volta da ditadura. Hoje são milhares sem vergonha batendo no peito e, como meu amigo do whattsapp, quando perguntado, você acha mesmo que a ditadura resolve alguma coisa, ele diz com convicção: acho. Quando ele é lembrado das ditaduras de esquerda e direita, que descambam para beneficiar “os amigos” do ditador ele elenca as desgraças que “os amigos” da democracia fizeram com o Brasil. Uma discussão sem fim. Todos têm argumentos na era das notícias falsas: “Prefeito ser revistado em cada esquina do que ser assaltado em cada quarteirão… Prefiro militar pedindo meu documento do que bandido levando minha carteira… Prefiro votar no Bolsonaro e cair do cavalo do que voltar no PT e me roubarem o cavalo…”
O poder escraviza, é uma tentação que seduz. Apenas a democracia e a alternância no poder são antídotos a esse mal.